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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A LOUCURA NOSSA DE CADA DIA






Saímos do tempo do silêncio em relação à saúde mental, justamente, porque as vozes dos excluídos fizeram-se ouvir nas suas mais profundas, indefinidas e imensuráveis dores. Suas histórias, uma trama dos mais diversos fatores, estiveram, por muito tempo, negligenciadas aos últimos planos e, por esse motivo, hoje, estamos diante de uma explícita pandemia, com índices cada dia maiores, elevando acentuadamente o número de pessoas que, em um momento de suas vidas, ou, durante anos, vivenciaram episódios que alteraram suas histórias.

Sabemos muito bem que a indiferença, primeiro dilacera, depois mata. O Brasil, conta em seus mais de 150 anos de estrutura manicomial, segundo site do Deputado Paulo Delgado e outras fontes, com a estimativa de mais de 300.000 pessoas mortas. Somente em uma unidade manicomial de Barbacena(MG), foram 60 mil, no século 20.

Diante de tais fatos é incoerência discutir a reforma anti-manicomial? É necessário pensar sem julgar, nem mesmo condenar, entretanto, rever posturas que façam da reforma manicomial o caminho que possibilite estruturar novos métodos e diretrizes quanto à construção de um modelo de saúde mental que esteja condizente, não com interesses de grupos, sejam eles quais forem, afinal, enquanto o conteúdo narcísico, diante das agruras dos que padecem continuar o debate acusatório, limítrofe e repleto de conflitos de interesses, estaremos diante do egocentrismo, legitimando a perpetuação de uma estrutura que ruiu ao longo das décadas.

Frente aos fatos, que vão desde as internações à força, por motivos que poderiam ser reelaborados diante das psicoterapias, até mesmo, o abuso das medicações, sendo essas, em determinados momentos, uma forma perversa de contenção, transformando a pessoa em um objeto manipulável e destituída do direito em participar daquilo que envolve o que é mais sagrado: sua vida.

Lembremo-nos de Austragésilo Carraro, em “O Canto dos Malditos”, livro que inspirou o filme “Bicho de Sete Cabeças”, que aos 16 anos, depois de ser flagrado em casa com um “baseado” no bolso, foi levado a uma unidade manicomial, internado nas piores condições, submetido aos mais agressivos e invasivos métodos, sem sequer poder verbalizar sua história, sendo essa, construída em um ambiente destituído de diálogo. Foram 4 anos de internação, 20 sessões de eletro-convulsoterapia .

Havia um pai distímico, com um mal humor crônico, uma mãe completamente anulada diante da condição de mulher e, um filho em meio aos seus conflitos que projetava no mundo todo seu pedido de socorro. Foi a maneira que encontrou para abandonar a invisibilidade, tornando-se visível a sua existência que necessitava de acolhimento, afeto, diálogo e respeito. Essa é apenas mais uma, diante das milhares de histórias que estão aí sem conhecimento público.
Sugiro aos leitores que busquem informações sobre a Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental.

Enfim, fica óbvio que o sistema manicomial é, em “muitos momentos”, uma extensão diferenciada e extremamente cruel de aprisionamento. Precisamos de uma ampla discussão, destituída dos ataques repletos de fragilidade, onde, nas lacunas, deixam evidenciar outros propósitos que estejam distantes de uma nova política de saúde mental elaborada pela multidisciplinaridade, mas, principalmente, com a participação da Associação dos Usuários de Saúde Mental, afinal, são esses que conhecem melhor que qualquer cientificismo barato a realidade jamais mensurada em meio as suas experiências vivas.

Precisamos do debate limpo e distanciado do contexto arbitrário para que consigamos avanços cada dia maiores, promovendo políticas que vão desde a prevenção de transtornos em saúde mental, até o acompanhamento das inserções daqueles egressos que, depois de longo tempo de internação, necessitam de um acompanhamento específico para serem reinseridos. Então, além de Programas Preventivos, os CAPS3(24 horas) são uma excelente sugestão, além de residências terapêuticas, de um numero maior de CAPS em relação aos que existem, de um número maior de profissionais, não apenas psicólogos ou psiquiatras, mas, das mais diversa áreas.

No Brasil, mesmo depois de tantos anos de reforma manicomial, estamos diante de antigos obstáculos, dentre eles o pequeno repasse que é feito as novas políticas de saúde mental.Em 2009, eram repassados 11% de todo montante destinado a saúde mental aos novos programas, sendo que 89% ainda são, segundo o psiquiatra Júlio Cesar Silveira Gomes Pinto, destinados as “ineficazes internações”. Não adianta sair dos hospitais e ir para os ambulatórios; é extremamente necessário ganhar as ruas, recriando o contexto da família e da sociedade.

Precisamos que a saúde mental seja discutida com a mesma seriedade como é na Europa, afinal, esse tema é uma preocupação não somente nossa, mas de todos os continentes.

Durante a reunião do Parlamento Europeu, em 10 de fevereiro de 2009, tomando como base a conferência, cujo título era: “Juntos para a Saúde Mental e o Bem Estar”, realizada em Bruxelas no mês de junho de 2008, onde foi estabelecido o “Acordo Europeu para a Saúde Mental e o bem-estar”, com base em diversos tópicos e resoluções em discussão pelo Comitê Econômico e Social Europeu, ficaram estabelecidas medidas que buscam direcionar um programa preventivo em saúde mental, afinal, entre 3 e 4 % do PIB dos estados membros e no ano de 2006, houve um custo econômico em decorrência da ineficácia dos programas existentes em saúde mental no valor de 436 milhões de Euros, mais de um 1 bilhão e duzentos milhões de reais, gastos esses, efetuados na maior parte das vezes, fora do setor de saúde, devido as ausências sistemáticas ao trabalho(Absenteísmo) e as aposentadorias antecipadas.

Tais despesas não refletem os encargos financeiros adicionais da morbidade que afetará as pessoas acometidas por psicopatologias.

Além dessas questões financeiras, ficou bastante explícito, a preocupação com aspectos muito mais significativos, frente a uma Europa atualmente sufocada por severos conflitos psicossociais, fazendo necessárias ações específicas e políticas que visem promover integração e inclusão social, além de outras tantas considerações, entre elas, no item X, que confere aos transtornos em saúde mental o maior índice da morbidade no continente.

Na resolução do Parlamento Europeu, no inciso 26, das disposições que tratam da Saúde Mental e Educação, há um convite aos Estados-Membros a organizarem programas de orientem, apóiem e atendam as necessidades sociais e emocionais, enfatizando a “importância dos que são destinados a promover a auto-estima e a gestão de crises”, bem como, a promoção de políticas públicas baseadas em estudos psicossociais.

Portanto, frente à busca de uma política de saúde mental, torna-se necessário que, assim como na Europa, o Brasil ouça todos os segmentos, fazendo uma ampla analise, pesquisa e discussão para que construamos uma nova estrutura, destituída dos lamentáveis horrores cometidos por detrás dos muros, esses mesmos, que escondem de nossos olhos tudo aquilo que cada um de nós tem e finge não compreender: A loucura nossa de cada dia.

Marcus Antonio Britto de Fleury Junior
Psicólogo e Coordenador do Ateliê de Inteligência.
Fontes: http://www.paulodelgado.com.br/revista/barbarie.htm
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/boletim_alerta_v14_n5.pdf

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