Acolher sim; recolher , nunca !
Ao tomarmos conhecimento das intenções e propostas estruturadas pelo Programa de Enfrentamento do crack, parte 2, nos deparamos, mais uma vez, com o retrocesso permeado por dissimuladas intenções quanto a imposição, às custas de 4 bilhões de reais, de políticas que não podem ser consideradas de enfrentamento, mas, de recolhimento, subserviência e acordo com as antigas práticas, onde, lançam seres humanos para detrás de muralhas da vergonha, que, ainda hoje, existem em diversas regiões de nosso país.
Basta que recorramos à memória, não de tempos remotos, mas que, na atualidade, nos causam profunda indignação.
Em Sorocaba, S.P, em menos de três anos, morreram 459 pessoas dentro dos manicômios. Isso, nos anos de 2006 a 2009, registrando um índice de óbitos elevadíssimo, totalizando 16,5 para cada 100 leitos.
Não podemos confundir atendimentos e intervenções psiquiátricas sérias, honestas e atualizadas, a condutas que, nos dias atuais, por mais grave que sejam as questões, exponham o ser humano a condições tão destruidoras quanto às práticas que somam mais de 300.000 mortes em manicômios. Trezentas mil pessoas. Esse é o numero que incomoda, não apenas quem luta por uma sociedade desprovida de manicômios, mas, àqueles, que, dentro de suas convicções, ainda exaltam-se, ensoberbecendo-se por seus títulos que, nada valem, se não houver sabedoria e capacidade de interpretação dos fenômenos sociais.
Inteligência desprovida de sabedoria, não passa de esperteza, ou, nos casos mais crônicos, péssimas intenções travestidas por chancelas e outros recursos midiáticos academicistas e elevadamente narcisistas.
Portanto, se não houver a estruturação de condições que possibilitem atendimentos e tratamentos dignos, nossos dependentes químicos, já aprisionados em seus próprios corpos, serão, mais uma vez, lançados após o arbitrário recolhimento a depositários humanos, locais estes, que escondem a miséria biopsicossocial, em favor da dissimulada aparência do Estado, entorpecido pelas doses ilusórias de meias-medidas que favorecem apenas a pequenos grupos ensandecidos pelo discurso da loucura e pela grande aversão às diferenças.
O Estado rendeu-se à pressão dos conservadores que, há muito, empenham-se em atribuir toda mazela social a determinadas pessoas que, organizam-se em grupos para não desintegrarem-se, na dilacerante invisibilidade de uma estrutura que transforma, de acordo com seus interesses, o caos social produzido pela corrupção e ineficácia, em eficientes métodos para poderem perpetuar velhas práticas de como extorquir lucros a partir do sofrimento humano.
O psiquiatra e escritor Edmar Oliveira, ex-diretor do Instituo Nise da Silveira, assim define:
“Estamos assistindo ao desmonte de um conjunto de políticas modernas e revolucionárias na área da Saúde Mental e a reimplantação de um modelo cruel e historicamente falido. Vamos olhar a questão por uma lente grande angular: Setores hipócritas da sociedade, uma mídia alarmista e políticas públicas equivocadas (quando não intencionais), estão usando o crack para criminalizar a pobreza e atacar os bolsões de populações em situação de vulnerabilidade com o eufemismo do “acolhimento involuntário”. Construção inconciliável, que nós, os que trabalhamos no campo da Saúde Mental, sabemos ser falsa. Ou o acolhimento é voluntário ou, se involuntário, aí não é mais acolhimento, e sim recolhimento.”
As políticas de saúde mental que vieram para humanizar as relações entre o sofrimento humano e o caos social, estão, mais uma vez, sujeitas ao toque perverso dos manicômios, sendo a internação involuntária, o mecanismo que atende aos seus interesses, excluindo a pessoa humana do seu espaço social e remetendo-a ao cerceamento e opressão.
Assim define o Psiquiatra Edmar Oliveira: “Assistir ao desmantelamento das políticas complexas que ainda estavam em ritmo de implantação, para a recuperação de um modelo já condenado no século passado, é um martírio que os militantes da construção da Reforma Psiquiátrica estão vivendo. A Reforma Psiquiátrica é um movimento que implantou dispositivos comunitários de Saúde Mental, reduzindo, consideravelmente, o uso do hospital psiquiátrico especializado. E pior é saber que o modelo da internação (na contramão da Reforma), proposto atualmente, condena à exclusão intencional (em nome do tratamento), populações vulneráveis que sofrem da epidemia de abandono social. E para as quais, haveriam de ser implantadas políticas públicas sociais, educacionais, habitacionais e de emprego, propondo a inclusão dessas pessoas que ficaram para trás, no apressamento competitivo dessa sociedade.”
Fico pensando que finalidades darão às redes substitutivas, se em relação aos consultórios de rua, diante desse programa de enfrentamento ao Crack (parte 2), o transformaram num mecanismo de investigação e controle das condições dos usuários, com o objetivo em definir quem deve ou não ser submetido a internação voluntária.
Isso é uma farsa empírica e um engodo para ludibriar a opinião pública, que confunde ausência de segurança pública a ineficazes políticas públicas de saúde mental.
Os consultórios de rua no Brasil, surgiram em Salvador, no final da década de 1990, visando atender pessoas expostas à vulnerabilidade social, sendo elas crianças, adolescentes e usuários de álcool e outras substâncias, entre elas, o crack, mantendo os mesmos princípios da ONG francesa, “Médicos do Mundo”, (1980), cuja proposta é “lutar contra todas as doenças até mesmo a injustiça”.
Os consultórios de rua são formados por médicos, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas, pedagogos, sociólogos e filósofos com suporte em um ambulatório móvel, promovendo estudos e devidos levantamentos que buscam compreender onde estão as áreas de concentração social que abrigam esse grupo de pessoas que necessitam de suporte e acolhimento, para, em seguida, definir estratégias de atuação que visem uma aproximação, estruturando assim, elos de confiança.
O que estamos assistindo, redundará na forma sutil da concretização dos intentos daqueles que tanto trabalharam contra um novo modelo de saúde mental no Brasil, trazendo de volta os velhos estigmas e preconceitos, estabelecendo em relação à loucura, o estereótipo limitante que deforma e furta possibilidades de convivência social.
Marcus Antonio Britto de Fleury Junior, Psicólogo e um dos coordenadores do Ateliê de Inteligência e do Programa preventivo e resignificativo, dirigido a crianças e adolescentes no cotidiano escolar e familiar.
ateliedeinteligencia@gmail.com
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