O estado tirano é cego , surdo e mudo
O Estado, trôpego em seu próprio fracasso, afundado nas inapropriadas políticas públicas, decreta abertamente seu conteúdo e caráter preconceituoso, tendencioso e descaradamente violento, ao impor aos moradores de rua, intitulados pelas autoridades como “mendigos”, o toque de recolher, privando-os, não apenas do direito constitucional quanto à igualdade, mas, limitando suas cidadanias e desconhecendo fatores que levam tais pessoas a buscar nas ruas o espaço necessário para que possam exaurir seus mais intensos conflitos, sendo esses, resultados de toda uma história marcada por violações de seus corpos, rejeições, uso e abuso de substâncias psicoativas (“drogas”), conflitos familiares, transtornos psicológicos, desemprego e desamparo social.
A realidade dos que fazem das ruas as suas moradas é extremamente complexa, afinal, tais pessoas são desprovidas de construções em relação ao futuro, pois, suas vidas concretizam-se no hoje e no agora, tornando-as sempre expostas a mudanças contínuas para que possam definir, pelo menos por curtos períodos, um local onde possam repousar, ganhar não apenas trocados, mas, conquistarem maior visibilidade, passando a fazer parte do contexto de determinada região.
Quantas vezes passo horas a fio observando a dinâmica da interação dessas pessoas com os que moram nas proximidades e, mesmo diante dos receios, os vemos serem contemplados com roupas, cobertores e alimentos, sendo essa, uma característica da forma como se organizam, definindo seus espaços territoriais, estabelecendo mecanismos para que satisfaçam suas necessidades imediatas.
Conversando com um senhor que é morador de rua, depois de conquistar sua confiança, apresentando-me como psicólogo, pude compreender um pouco da complexa relação que estruturam, conhecendo os motivos pelos quais optam em dormir preferencialmente em praças, debaixo de marquises e locais abertos, e o fazem para serem vistos, pois, assim, qualquer investida violenta fica à vista de todos que passem pelas proximidades. Essa pessoa, por sinal, muito inteligente, disse que atualmente procura lugares onde tenham câmeras de segurança, afinal, o fato de estarem sendo “monitorados” minimiza ações, tanto de outros grupos de moradores de ruas, “principalmente os mais jovens” que, muitas vezes, disputam territórios, bem como, de abordagens policiais que os exponham aos mais variados riscos. Relatou-me também que é muito pequeno o número dos moradores que buscam os albergues e as “casas acolhida” por diversos fatores, entre eles, a anamnese (entrevista) a que são submetidos, pois, suas histórias, muitas vezes, podem revelar detalhes que poderiam prejudicá-los, ou mesmo, cercear o que compreendem por liberdade.
Conheci no estado de São Paulo, na cidade de Dracena, um morador de rua argentino que apareceu repentinamente no centro da cidade. Ele sempre muito exótico, vestia-se pelas manhãs com um sobre-tudo preto, um chapéu, solilóquio, arredio, possuidor de um olhar analítico, estabelecia em relação a toda cidade, bem como, aos assistentes sociais que o procuravam, um grande silêncio, sempre se esquivando e evitando ao máximo qualquer aproximação e qualquer forma de contato.
Repentinamente, algumas esculturas surgiram nas encostas de uma estrada desativada e descobriu-se então ser o argentino possuidor de um grande talento. Há indícios, segundo os que conseguem se aproximar dessa pessoa, que tenha exercido a medicina, tendo abandonado a profissão e a família, embrenhando-se pelo interior do Estado, até fixar-se em uma região que fica a mais de 600 km da capital, distante dos perigos, mas, prisioneiro de seus próprios medos.
Temos, no Brasil, em torno de 1.8 milhão de pessoas que moram nas ruas, ou seja, entre 0,6 e 1,0% da população, tendo cada município uma realidade própria que pode ser alterada caso sejam implantados programas desprovidos do caráter coercitivo que visa punir o indivíduo, reintegrando-o, por intermédio de programas abrangentes, principalmente que considerem as realidades em relação a ausência de renda. Segundo dados do ministério social e combate à fome, 74% dessas pessoas sabem ler e escrever, 48% concluíram o ensino fundamental, 5% iniciaram um curso superior e 2% o completou.
É necessário a implementação de novos direcionamentos em relação às políticas publicas que visem acompanhar, desde a gravidez até o envelhecer, através de projetos psicossociais que envolvam as mais diversas profissões (pedagogos, advogados, assistentes sociais, odontólogos, músicos e médicos), não limitadas ao âmbito dos espaços físicos (consultórios ou escritórios), mas, buscando em campo, conhecer as realidades de cada um, suas particularidades, suas manifestações subjetivas de como vêm o mundo e como acreditam estar inseridas ao mesmo.
Retirar as pessoas de seus espaços definidos é a grande comprovação da falta de conhecimento sobre as realidades sociais e os agravantes psicológicos que tais decisões geram, afinal, há toda um identidade formada e uma complexidade de circunstâncias envolvendo questões de saúde pública que necessitam ser tratadas, resgatando a auto-estima e gerando suporte para que essas pessoas consigam desconstruir hábitos e vícios que compõem suas realidades, agregando novos valores e projetos de vida. Mas tudo deve ser feito de forma planejada por estudiosos respeitando sempre o SER HUMANO que há dentro de cada um deles, e não o projeto demagógico que ocupa os corpos de políticos incompetentes, preconceituosos, serviçais dos interesses das elites e cognitivamente limitados.
Assim, quantos são os que estão imersos a dura realidade das ruas, expostos a toda forma de agressão e violação de suas liberdades e direitos como cidadãos?
Tal questão é muito abrangente para que seja resolvida de forma tão arbitrária, retirando ou espalhando as pessoas em condições de vulnerabilidade social de seus espaços definidos , para que não vejamos a incompetência do Estado
. Marcus Antonio Britto de Fleury Junior, Psicólogo e um dos coordenadores do Ateliê de Inteligência e do Programa preventivo e resignificativo, dirigido a crianças e adolescentes no cotidiano escolar e familiar.
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