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terça-feira, 3 de maio de 2011

Nas entrelinhas da lei



O retrocesso bate às portas pedindo licença para adentrar, não somente em suas casas, no entanto, em suas vidas, trazendo no olhar uma quantidade de sadismo e aquela perplexidade psicopática típica dos que, passo a passo, estruturam seus golpes, sempre envoltos em ritos de prazer, fazendo das leis os suportes para a concretização das fantasias tiranas e perversas, persuadindo a sociedade através da manipulação de fatos e desejando transformar pessoas adoecidas nos motivos das incompetências das políticas públicas de saúde mental, propondo leis que encarcerem e sentenciem judicialmente dependentes químicos, punindo-os, estigmatizando-os e execrando-os do convívio social.

O projeto de Lei 111/2010,de autoria do Senador Demóstenes Torres, que tramita no Congresso Nacional, é a mais nociva arma forjada contra o ser humano, principalmente, estando esse, acometido pela dependência química, doença classificada pela Organização Mundial de Saúde e descrita nos CID-10 e DSM-IV, sendo as sugestões para tratá-la, a partir de condutas terapêuticas que abranjam a multidisciplinaridade, pois, tal transtorno, abarca em si contextos extremamente complexos que implicam em fatores biopsicossociais, sendo o aspecto jurídico, um detalhe que não deve ser desconsiderado, mas colocado no devido lugar do fato e não como procedimento clínico, afinal, dependente químico não é criminoso e necessita de todo amparo necessário baseado em técnicas embasadas por estudos e pesquisas científicas, além, é claro, do suporte do afeto e acolhimento para que livre-se das mais duras penas as quais está sentenciado por suas dores não atendidas, não escutadas e não sabidas, pois, encontra-se recluso ao pior cárcere do mundo, atado aos ferrolhos da angústia, solidão, medos e desespero, sendo duramente castigado e punido em seu próprio corpo e mente por não conseguir lidar com as histórias compõem suas vidas.

O dependente químico, mesmo que inicialmente apresente certa resistência e adesão ao tratamento, sempre está com as mãos estendidas a espera de outras que o possam ajudá-lo em relação à condição que se encontra, e por mais tênue que pareça, sua capacidade e vontade em transpor as dificuldades que apresenta, são evidenciadas em sua falas quando começa a descrever sua história composta por profundas perdas e traumas, cujos componentes, vão desde os conflitos sociais até o mais intenso abandono psíquico; portanto, não é a detenção , conforme Art:28, nem a sentença de um juiz que suspende a pena de "privação da liberdade" por "tratamento especializado", mas, uma política que incentive um novo modelo de políticas de saúde mental no Brasil, desprovido de privilégios a uma categoria, entretanto, que abranja a importância das mais diversas profissões, numa atuação multidisciplinar, que veja o ser humano não como criminoso e que o veja muito além da doença que o acomete, mas, que seja compreendido por suas fragilidades e intensos conflitos, estando esses, presentes em todos nós, independente de quaisquer situações.

Quantos, nesse exato momento, estão envolvidos pelas dores de seus filhos e mergulhados no sentimento de fracasso como pais, como filhos, como esposas, como amigos? Imagino que milhares, entretanto, nada se compara a dor sentida por um dependente químico, cujo corpo físico e mental, fazem desaparecer, por instantes, recriando um outro, até que o efeito químico passe e, de volta ao seu invólucro de corpóreo de "carne, ossos e sentimentos, aprofunda-se nas alterações estabelecidas nas mediações químicas neuronais, que, em segundos estavam a mil por hora e, abruptamente, vê todo seu ritmo modificado e novamente remetido ao corpo que não consegue desfazer, mergulhando no contexto de seus conflitos psicológicos.

O dependente químico não deve ser usado como plataforma de interesses eleitoreiros que destinam-se elevar o narcisismo de pretensos salvadores da pátria, pois, em primeiro lugar, não se salva a pátria subtraindo a inteligência de uma nação ao tentar dissuadi-la com troca de palavras, como o próprio projeto de lei 111/2010 sugerir aos seus defensores em próprio texto, orientando que: "o termo "compulsório" deve sempre estar associado ao termo "tratamento médico" e não internação, visto que, a internação compulsória é carregada de estigma e sofre críticas ideológicas de toda ordem"; isso, a meu ver, fere gravemente princípios, entre eles, a honestidade e o respeito ao próximo, expondo a intencionalidade punitiva impregnada nas justificativas expostas no próprio texto, onde diz: " A outra parte, que trata da popularmente denominada internação compulsória, resgata a possibilidade de prisão para o usuário de drogas". Então, mais uma vez afirmo: Dependente químico não é bandido, e detenção não é tratamento.

Além desses absurdos explícitos nesse projeto de lei, há outros que desmerecem a presença de profissionais dos mais variados segmentos em saúde mental na elaboração de projetos terapêuticos e ainda transfere ao judiciário a responsabilidade em definir quais pessoas serão contempladas por pena substitutiva (internação), sendo ela, "tratamento especializado". Diz o projeto de lei que: "uma câmara técnica formada por médicos especialistas em psiquiatria estabelecerão, de maneira individualizada, o projeto terapêutico aos indivíduos considerados pelo judiciário elegíveis a substituição da pena por alguma forma de tratamento".

O projeto de lei 111, representa o retrocesso em relação aos avanços das políticas de saúde mental, além de criar estigmas sobre a pessoa do dependente químico, transformando sua dor e seus graves transtornos em algo que deva ser condenado e lançado para detrás dos muros, onde, geralmente, o Estado esconde os frutos de suas incompetências quanto as políticas públicas. Além do mais, é o retorno das práticas manicomiais que deve ser substituído por serviços que humanizem e reestruturem, como os CAPS-III e CAPS AD (Álcool e Drogas), além de leitos disponíveis em hospitais gerais, consultórios de rua, casas de apoio e outros projetos elaborados que visem tratar e não punir o Ser Humano.

Marcus Antonio Britto de Fleury Junior é psicólogo, coordenador do programa de combate a depressão e do Grupo de Estudos Michel Foucault, do Ateliê de Inteligência

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